quinta-feira, 10 de novembro de 2011

Nosso pequeno traço




“A morte é mais universal que a vida; todo mundo morre, mas nem todo mundo vive.” Alan Sachs

Sabemos que nosso tempo aqui na terra é limitado. No entanto, não aceitamos muito bem essa realidade enfática. Temos a eternidade dentro de nós, e por não saber, não querer ou não aceitar que eternidade é também composta pela morte, ficamos atônitos ante esse fato curioso da vida.

Muito já foi escrito, falado, cantado, conjecturado sobre a morte. Gostaria de pensar o assunto refletindo sobre a vida. Aceitar que nosso tempo na terra é limitado tem o poder de nos libertar. Libertação para uma vida que tenha sentido. Na compreensão de Jesus, vida ZOE (existência) e não apenas vida BIOS (biológica). Disse o mestre “Eu vim para quem tenham vida e a tenham em abundância”. O que temos na vida está compreendido no pequeno traço que separa as datas de nascimento e de morte de cada ser humano.

Os cemitérios têm a deslumbrante maneira de nos lembrar da vida. Olhando as lápides percebemos que pessoas estão marcadas pelo traço que separa as datas de vida e morte. O que aconteceu com essas pessoas nesse período que foi do nascimento à morte? Pelo que elas viveram? Quais foram os seus sonhos? Quem elas amaram?

Diante dessa questões eu procuro responder em vida como estou vivendo esse meu pequeno traço que um dia separará as datas. Há alguns dias estive em um velório e sepultamento de uma jovem, Rafaela*. Momento interessante da vida é a morte de alguém, e se essa pessoa for próxima, além da tristeza por causa da ausência do ente querido, vem uma maior reflexão sobre a vida.

Como o nome hebraico Rafaela nos sugere a cura de Deus, devemos viver o traço da vida curados e curadas das mazelas que atrapalham os seres humanos de uma vida (Zoe) em abundância sugerida pelo Cristo de Deus. Precisamos buscar uma existência, onde nosso relacionamento com a alteridade e com Deus, seja o resultado de uma terapia e/ou cura de nosso ser, a fim de que possamos saber quem nós somos, quem é o nosso próximo e quem é Deus. É bom lembrar que a vida é muito mais do que aquilo que conhecemos.

Diante da possibilidade da morte muitos se voltam para a fé. Contudo, deveremos cultivar uma fé inteligente. Assim como alguns vivem como se não houvesse amanhã, outros usam a fé para viver como se não houvesse hoje. Precisamos nos envolver com a nossa vida.
O ser humano contemporâneo vive uma crise na esperança. E de muitas mortes que vivemos nesse traço da existência, a morte da esperança é uma das mais prejudiciais. Carlos Mesters disse que “morte pior do que a morte da esperança não existe. Ela faz do homem um cadáver ambulante”. Observando as pessoas e seus comportamentos no funeral de Rafaela me veio a seguinte questão: será que apenas Rafa é quem de fato estava morta naquele lugar?

Quantas pessoas vazias de significados e significantes adentram os locais, a maioria ambientes religiosos, onde pessoas mortas estão sendo veladas por outras mortas? Gente que morre sua vida. Pessoas que precisam aprender com Riobaldo o sentido da existência quando ele diz que “o correr da vida embrulha tudo. A vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta. O que ela quer da gente é coragem”.

Morrendo a esperança a cura fica cada vez mais complicada de ser estabelecida nas pessoas. Mesmo com as estatísticas comprovando o revés  da humanidade, precisamos ser curados das doenças que nos descaracterizam como seres humanos: insensibilidade, ódio, indiferença, falta de perdão, apatia, injustiças, dentre outras. É importante deixar de lado a construção de prisões que damos o nome de liberdade. A única maneira para essa cura ser estabelecida é trilharmos o caminho da fé, da esperança e do amor que faz da vida da gente ser vida de gente.

É certo que não estaremos prontos para viver se não estivermos preparados para morrer. Que sejamos curados de tudo aquilo que não é vida, mesmo reconhecendo que a morte faz parte da vida, vivamos de modo que a vida biológica seja congraçada à vida que Jesus veio para dá em abundância.

Que essa não seja a canção dos nossos funerais:

Devia ter amado mais
Ter chorado mais
Ter visto o sol nascer
Devia ter arriscado mais
E até errado mais
Ter feito o que eu queria fazer...

Queria ter aceitado
As pessoas como elas são
Cada um sabe a alegria
E a dor que traz no coração...

O acaso vai me proteger
Enquanto eu andar distraído
O acaso vai me proteger
Enquanto eu andar...

Devia ter complicado menos
Trabalhado menos
Ter visto o sol se pôr
Devia ter me importado menos
Com problemas pequenos
Ter morrido de amor...

Queria ter aceitado
A vida como ela é
A cada um cabe alegrias
E a tristeza que vier...

Devia ter complicado menos
Trabalhado menos
Ter visto o sol se pôr...

Epitáfio (Titãs)

O que estamos fazendo do nosso pequeno traço? A morte chegou, chega e chegará para todas as pessoas. Entretanto, a vida com sentido existencial salutar apenas algumas pessoas desfrutam. Estão diante de nós: Morte ou Vida na vida? eis a questão...

Fábio Porto

* Esposa do nosso querido Léo que é pastor da Igreja Batista no Morro de São Paulo. Que o Pai conforte o coração dos enlutados.